John Lennon, sapato velho e um amor para recordar
 



Cronicas

John Lennon, sapato velho e um amor para recordar

Anabela R. Kohlmann Ferrarini


No último dia 09 de outubro de 2022, John Lennon faria 82 anos. Seria um avô de óculos de aros redondos, cabelos grisalhos voando ao vento, caminhando pelo Central Park, imaginando canções, compondo sonhos. Mas morreu aos 40 anos, assassinado a tiros, em 08 de dezembro de 1982. Ainda hoje lamento essa morte como o fiz então. A morte. De novo ela a me rondar, farejando minhas dores, querendo um quinhão de sofrimento para engordar sua sanha inextinguível.

Mergulho na xícara de café meu desespero e deixo a memória partir, sem licença ou passaporte, até desembarcar na sala de paredes de madeira, aqui e ali roídas de cupim, diante da televisão, que transmitia a notícia. Naquele dia, minha frágil concepção de mundo, ordem e beleza foi rasgada, esfolada, até virar pó, pela primeira vez na vida. Fã dos Beatles, tinha em Lennon o mais amado, e a violência que o vitimou fez o mundo ficar preto e branco como a capa do seu último álbum. Aquele quase beijo de John e Yoko deixou de ser amorosa expectativa e se tornou perda.

Eu acabara de comprar, com o dinheiro da mesada, o LP Double Fantasy, lançado em novembro daquele ano, e ouvia a faixa Woman quase até gastar, como exclamava minha mãe. Meu namorado não entendia tanto amor e tanta tristeza. Sofria de um mal disfarçado ciúme do garoto de Liverpool. Mas aceitava, e se rendia, e ouvia comigo. Anos depois, recém-casados, donos de um apartamento financiado e de um aparelho de som Sharp de último tipo, eu grávida do nosso primeiro filho, ele me presenteou com o CD que inauguraria o equipamento. Acertou quem pensou Double Fantasy. Dessa vez, a música que me embalava enquanto eu aprendia a ser mãe era Beatiful Boy. Lembranças para outra ocasião.

Um gole de café e a algazarra matinal dos passarinhos me trazem de volta, mas logo me chega, veloz, outro postal do passado, e me vejo a cantarolar Sapato Velho, do Roupa Nova. Naquele tempo, tínhamos estrelas nos olhos e os cabelos enfeitados com flores de maio, margaridas e azaleias. Já ali havia a promessa de uma vida a dois, o germe de um querer para a vida inteira. Mas eu não sabia. Nem ele, tampouco. E o fio das lembranças puxa mais alguma coisa, uns versos, meus versos? Uma ode a um velho e sujo par de tênis, companheiro de passeios, fugas, mergulhos na biblioteca. Uma certa vergonha me assalta - a mãe que habita em mim repudia os hábitos de higiene da adolescente que fui, enquanto a escritora que tento ser sorri, saudosa da inocência juvenil, capaz de escrever um poema dessa natureza. Mas há que pensar que eu estava certa, ao conversar com meus tênis: "Pisaste barro e terra seca / grama verde e concreto. / Já beijaste, tranquilo, / os tênis de outro alguém. / Sabe lá se não eram / daquele que eu quero bem?". Eram, afinal de contas. Calçavam pés que caminharam comigo pela vida e pelas ruas, pelas estradas e corredores de hospital, pelos jardins e labirintos do silêncio. Uma longa caminhada, e ainda assim, tão, tão breve.

O café já morno reclama que eu lhe dê importância, e interrompo as recordações, na urgência da vida que não espera, que não respeita o luto, que não estanca a melancolia, que não aplaca a saudade de um futuro que não existirá - ver meu namorado, tornado esposo, pai e avô, fazer dos braços carrossel brincante, gargalhar e catar conchinhas na praia com nossa neta (ou netos), conhecer as igrejas de Minas Gerais, percorrer o Caminho de Santiago de Compostela, aprender a fazer desenhos com a espuma do café.

E a memória, condutora irreprimível desse enleio, ressoa a inconfundível voz de John Lennon, cantando o amor e o recomeço, No one´s to blame, I know time flies so quickly / But when I see you, Darling / It´s like we both are falling in love again / It´ll be just like starting over (over) / Starting over (over).

Levanto do sofá, coloco a xícara vazia na pia e abro as janelas da sala e do quarto, e vislumbro o límpido céu do amanhecer. Sinto que se abrem, também, sem que eu assim o decida, as janelas da alma machucada. Tento recuar, voltar às sombras que a morte do amado me deu por companheiras, mas meu coração é mais sábio do que eu: é tempo de começar de novo. E de novo. E de novo.


Anabela Rute Kohlmann Ferrarini é gaúcha de Porto Alegre. Viveu durante 17 anos em Rondonópolis, Mato Grosso, onde se tornou Mestra em Educação pelo Programa de Pós-Graduação da UFMT. Membro do grupo de pesquisa Alfabetização e Letramento Escolar (ALFALE) e do Clube de Leitura Doce de Letra. De volta ao Sul, trabalha com revisão de textos e tem se dedicado à escrita de poemas, crônicas e contos. Avó da Tiana e mãe do Davi, da Júlia e do Mateus e leitora encantada da poesia de Mario Quintana. Participa do Curso Online de Formação de Escritores

 

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